sexta-feira, abril 20, 2012

História de vida de Filomena Fonseca Alves

Filomena Fonseca Alves


Em França nascia o sol e aqui punha-se a luaAu Revoir Portugal!

Joana Dias - Como se chama?
Filomena Fonseca Alves - Filomena Fonseca Alves.
J - Quando nasceu?
F - 10 de Outubro de 1965.
J - Quantos anos tem?
F - 45 anos.
J - Onde nasceu?
F - Regadas, Fafe.
J - Lugar da residência atual coincide com o lugar de nascimento ou não? Por quê?
F – Não, porque fui trabalhar para outros sítios e depois, como o meu marido era de Felgueiras, depois do casamento mudei-me para lá
J - Quantos irmãos teve?
F - Tive quatro: três irmãs e um irmão.
J - A sua família tinha uma alcunha?
F - Tínhamos, chamavam-nos de Vitorinos.
J - E por quê?
F - Não sei porquê esse nome, mas sei que o nome veio da família do meu pai.
J - Como se chamam ou chamavam os seus pais?
F - Pai: José Maria Fonseca Alves
F - Mãe: Maria de Lurdes Alves Fonseca
J - De onde eram?
F - Local de nascimento do pai: Lugar da Trofa, Pombeiro - Felgueiras
F - Local de nascimento da mãe: Regadas – Fafe.
J - Sabe em que ano nasceram?
F - Não me lembro do ano certo, mas sei que foi pela década de 30.
Maria de Lurdes Alves Fonseca nasceu no ano de 1934.
J - Sabe como eles se conheceram?
F - A minha mãe estava em Felgueiras a servir e como o meu pai era de lá eles conheceram-se. Namoraram durante nove anos, entretanto zangaram-se durante três anos e depois voltaram a namorar, mas casaram tarde para a altura, porque a minha mãe já casou com 26 anos.
J - Essa expressão de “estar a servir” não se costuma ouvir hoje em dia, o que quer dizer?
F - Mas dantes usava-se muito e as pessoas mais velhas ainda usam, a minha mãe foi trabalhar para casa de um casal que tinha possibilidades para ter uma empregada e a minha mãe fazia tudo o que era preciso fazer e também tomava conta dos filhos dos patrões. Tinha que limpar, cozinhar e tudo o que fosse preciso fazer.
J - Em que ano casaram?
F - Casaram no ano em que a minha irmã mais velha nasceu, portanto foi em 1960. Não me lembro do dia, mas lembro-me de a minha mãe me contar que casaram às sete da manhã no Mosteiro de Pombeiro e que depois almoçaram massa com feijão.
J - Tem alguma fotografia do casamento dos seus pais?
F - Não, naquele tempo não tinham dinheiro e o casamento foi mesmo muito simples.
J - Onde ficaram a viver?
F - Depois de se casarem foram morar para a casa da minha avó materna em Regadas, agora mora lá uma senhora que depois dos meus avós morrerem compraram a casa, mas ela continua igual, porque não mudaram a fachada.
J - Quantos filhos tiveram?
F - Tiveram quatro raparigas e um rapaz, eu sou a terceira mais velha.
J - Qual a profissão do seu pai?
F - Era sapateiro, mas depois nos anos 60 foi para França e lá trabalhava nas obras.
J - Qual a profissão da sua mãe?
F - A minha mãe tirava areia do rio com um rodo para as casas, trazia a areia para a estrada num cesto e ia lá um trator buscar. Quando era ainda nova, no fim da escola chegava a ir muitas vezes ter com ela para ajudá-la a levar os cestos com areia para a estrada.
J - O que é um rodo?
F - Um rodo é tipo um engaço com uns furos e pesado para conseguir ir até ao fundo e depois puxar a areia para as bermas. Aquilo era tapado e só tinha os buraquinhos para a água sair e puxar só a areia.
J - A sua família passava por dificuldades?
F - O meu pai faleceu quando eu tinha dezoito anos e como ele foi para França e vinha poucas vezes a casa sempre tive pouco contacto com ele, mas a minha mãe diz que comida nunca faltou. Era uma casa onde se matava o porco e tínhamos galinhas. O conforto não era muito, mas comida havia sempre.
J - Nasceu em casa ou no hospital?
F - Em casa.
J - Mas houve a assistência de alguém com habilitações para fazer um parto?
F - Não, nós chamávamos-lhe uma habilidosa, era uma pessoa que tinha jeito para fazer partos e fazia os partos todos da aldeia. Só o meu irmão mais novo é que nasceu no hospital, eu e o resto das minhas irmãs nascemos todas em casa.
J - Teve possibilidades de estudar?
F - Não, quer dizer, estudei até à quarta classe, mas porque era obrigatório porque se não fosse se calhar nem tinha ido para a escola.
J - Quantos anos frequentou a escola?
F - Estive cinco anos, reprovei na terceira classe ,mas foi porque nunca tinha tempo para estudar porque logo que chegava da escola tinha que ir ou cavar o terreno que tínhamos, ou ir ao monte buscar lenha ou tinha que ir ajudar a minha mãe. No verão, como o tempo era mais quente eu e as minhas irmãs acordávamos às cinco ou seis da manhã, antes de irmos para a escola, para irmos buscar pinhas ao monte.
J - Onde estudou?
F - Estudei na escola de Regadas, na aldeia onde nasci.
J - Seguiu a profissão de algum dos seus pais?
F - Segui a da minha mãe, porque a minha primeira profissão também foi ir servir para casa de uma prima.
J - Escolheu a sua profissão livremente ou foi imposta pelos seus pais ou pelas circunstâncias da vida?
F - Foram as duas coisas, porque eu comecei a trabalhar logo que saí da escola e ainda era uma criança e não sabia o que era melhor para mim, mas também tinha de ir trabalhar para ajudar em casa, porque os meus pais não tinham possibilidades.
J - Como conseguiu os seus empregos?
F - Foi através dos meus pais, porque fui servir para uma prima. Logo no dia depois de eu acabar a quarta classe os meus primos foram buscar-me a casa para eu ir trabalhar para casa deles, porque eles tinham um filho pequeno e como trabalhavam numa fábrica precisavam que alguém tomasse conta dele. Eu lembro-me que chorei muito, porque não queria ir e então a minha mãe pediu ao meu pai para me deixar ficar mais uns dias em casa. Entretanto passado uma semana, eles foram buscar-me e foi a primeira vez que eu saí de casa, porque eles eram de Felgueiras e eu ficava lá em casa deles a dormir, só vinha ao fim de semana a casa, tinha eu dez anos.
J - Aprendeu uma profissão?
F - Não porque eu estive sempre a servir em casa de pessoas e o que tinha que fazer eram sempre coisas que fazia em casa desde pequena.
J - Teve sempre a mesma residência ou mudou de lugar?
F - Mudei quando tive o primeiro trabalho que era em Felgueiras, mas não fiquei muito tempo lá, porque os meus patrões não eram meus amigos e não me tratavam muito bem. Quando me fui embora a minha prima até me obrigou a devolver-lhe umas meias que me tinha dado, porque se me ia embora não podia ficar com elas.
Depois, quando já tinha 11 anos fui servir para uma senhora que era enfermeira que morava perto de minha casa, mas dormia em casa dela, não ia para casa. Essa senhora era muito minha amiga, ainda me lembro do nome dela, chamava-se dona Rosa.
Quando voltei para Portugal fui morar para a minha aldeia com a minha mãe e as minhas irmãs, mas quando me casei mudei-me para Felgueiras porque o meu marido é de cá.
A grande mudança foi mesmo quando fui para França, porque andei sempre entre Felgueiras e Fafe que são à beira uma da outra.
J - Emigrou para o estrangeiro?
F - Sim, para França
J - Quando foi?
F - Fui no início setembro de 1977, porque lembro-me que quando fiz doze anos já estava em França. Foi também quando tirei as minhas primeiras fotografias daquelas de passe, porque era preciso para o passaporte.
J - Por quê?
F - À beira da senhora onde eu estava a servir, da dona Rosa, havia uma loja de retalhos de tecidos, e a dona da loja, que se chamava Miquinhas, tinha uma sobrinha que estava em França que precisava de uma empregada, porque deixar os filhos no infantário lá ficava mais caro e então a dona da loja como me conhecia perguntou-me se eu queria ir para França trabalhar e resolveu tudo em 15 dias.
J - O que acharam os seus pais de ir para tão longe?
F - O meu pai tinha estado em França também, na altura, já tinha voltado de vez, mas ele incentivou-me porque dizia que era um país bom e que ia ganhar mais.
J - Quanto ganhava lá?
F - Lá ganhava seis contos por mês e aqui ganhava mil escudos, era uma diferença muito grande. Mas eu não recebia o dinheiro, porque a minha patroa mandava o dinheiro para os meus pais. Uma vez o meu pai mandou uma carta à minha patroa para lhe mandar seis meses adiantados, porque precisava de comprar uma motosserra.
J - Mas se não recebia nada do ordenado, como fazia se precisasse ou quisesse comprar alguma coisa?
F - Eu ainda era uma criança e morava com os meus patrões, eles davam-me roupa quando precisava e eu nunca saía de casa, quando saía era com eles ou para ir comprar pão de manhã e para ir levar os dois filhos dos meus patrões à escola.
J - Foi sozinha para França?
F - Não, a sobrinha da Miquinhas veio buscar-me a Portugal e foi ela que pagou o passaporte, porque os meus pais não tinham possibilidades, fomos de comboio e demorámos dois dias a chegar, ela morava em Paris. Foi a primeira vez que andei de comboio e lembro-me que até tinha camas no comboio.
J - Quantos anos aí ficou?
F - Fiquei quase sete anos.
J- A adaptação foi fácil ou difícil?
F - Não foi fácil. Quando cheguei lá era tudo estranho para mim. Fui morar para um prédio com quinze andares, nós morávamos no quarto andar e as pessoas eram muito diferentes das da minha aldeia. Só naquele prédio havia todo o tipo de gente, chineses e marroquinos, por exemplo. Mas eu também não saía muito porque eu também não sabia falar francês e não falava com ninguém.
Passei lá os natais todos, só vinha a casa em agosto e não vim todos os anos, porque eu nem estive no casamento da minha irmã mais velha, porque estava ainda em França e não tinha dinheiro para vir e quando o meu irmão mais novo nasceu também estava lá e só o conheci mais tarde.
J - Fez alguma amizade enquanto estava em França?
F - Não, eu sentia-me muito sozinha lá, muitas vezes passava as noites a chorar, porque não tinha lá ninguém e nem tinha tempo para passear, passava o dia a trabalhar e quando saía era sempre com os meus patrões. Ainda cheguei a conhecer uma senhora que era de Castelo Branco que morava no mesmo prédio que eu, no décimo segundo andar, e como ela era doméstica ia levar os filhos à escola e eu ia às vezes com ela levar os filhos dos meus patrões e era a única pessoa com quem eu falava mais.
J - Lembra-se do nome dessa senhora?
F - Lembro, chama-se Carminda.
J - Quando regressou?
F - Voltei quando tinha dezoito anos, em 1983.
J - Depois de voltar manteve contacto ou voltou a falar com a senhora Carminda?
F - Não, ela ficou lá e deve ter feito a vida dela lá, porque já tinha dois filhos que andavam lá na escola e nunca mais soube nada dela.
J - Por que regressou?
F - Nunca gostei de estar lá e, na altura, os meus patrões tinham que me fazer os papéis para eu ficar legal só que como eles não queriam essa responsabilidade e eles também nunca foram meus amigos.
J - Não se arrependeu de voltar?
F - Eu gostava de Paris, mas não me arrependi de voltar, porque estava longe de toda a gente e foi muito duro. Eu passava os domingos no meu quarto a ler e reler as cartas que a minha mãe e as minhas irmãs me mandavam, porque as saudades eram muitas.
Eu sentia muito a falta deles, estava muito tempo sem os ver até porque dez dias depois de eu voltar de França o meu pai faleceu com 49 anos.
J - E guardou alguma dessas cartas?
F - Não, acho que deitei fora quando voltei de lá.
J – É casada?
F – Sim.
J – Como se chama o seu marido?
F- José Isménio Ferreira Dias.
J- Quantos filhos tem?
F – Duas filhas, uma com vinte e três e outra com doze anos. A mais velha chama-se Joana Dias e a mais nova Ana Margarida Dias.
J - Quando era jovem, como se divertia?
F - Nunca brinquei nem me diverti, sempre que chegava a casa da escola tinha que ir logo ajudar na casa ou no terreno que tínhamos. Na minha aldeia, havia o S. Francisco mas o meu pai nunca nos deixava ir, ficávamos sempre em casa.
Quando fui para França ia às vezes sair com os meus patrões ao fim de semana àquelas festas de emigrantes, mas eu não me lembro muito bem, porque era novita. Lembro-me que uma vez vimos a Linda de Suza, uma que cantava a mala de cartão, na altura era muito conhecida. Ela até chegou num helicóptero, era muito famosa na altura. Mas na maioria das vezes punha-me na janela do meu quarto a ver a Torre Eiffel, dava para ver de lá e eu ficava admirada com um monumento tão grande.
J - Quando e como conheceu o seu marido?
F - Por acaso é uma história engraçada, porque nós vimo-nos pela primeira vez quando eu tinha onze que foi quando vim trabalhar para Felgueiras e ele engraçou comigo, porque ele até andava assim atrás de mim só que depois eu saí daqui e fui trabalhar para a minha terra e nunca mais o vi. Depois só nos voltámos a encontrar quando eu já tinha dezanove anos, em 1984, e fui trabalhar para um fábrica de calçado em Felgueiras, depois de voltar de França.
A minha irmã mais nova trabalhava na mesma fábrica que eu e nós íamos para o trabalho de camioneta e depois para voltar ao fim do dia tínhamos que esperar uma hora pela camionete. O meu marido andava por lá, até na altura andava com uma rapariga que era da minha aldeia e depois ele voltou a conhecer-me, depois de tantos anos e voltou a engraçar comigo.
J- Tem correspondência do seu namoro?
F - Não, nós nunca chegámos a trocar cartas.
J - Tem fotografias tiradas durante o seu namoro?
F - Não chegámos a tirar nenhuma fotografia juntos enquanto namorávamos.
J - Quando casaram? Onde?
F - Nós começámos a namorar em setembro de 1984 e casámos a 18 de agosto de 85. Casámos na Igreja de Santo Estevão na freguesia onde nasci, em Regadas (Fafe).
J - Onde ficaram a morar?
F – Fomos morar para a terra do meu marido e ficámos a viver na casa dos meus sogros em Felgueiras na freguesia de Pombeiro de Ribavizela.
J - Praticava ou frequentava alguma religião?
F - A minha família era toda católica e eram muito religiosos. Quando era pequena ia sempre à missa todos os domingos. Depois do meu pai falecer a minha mãe até começou a ir à missa todos os dias, só não ia se não houvesse.
J - Andou na catequese?
F - Andei, mas só até à primeira comunhão, já não fiz comunhão solene nem crisma, fui trabalhar ainda nova e deixei de ir por causa do trabalho. Mas tenho uma foto da primeira comunhão, porque até quem foi a minha madrinha foi uma vizinha que era solteira e eu gostava muito dela.
J - Participava nas festas da paróquia da sua aldeia?
F - Sim, em Regadas ainda se festeja o S. Francisco e eu ia sempre na procissão vestida de anjinho, só deixei de ir depois que deixei a escola e fui trabalhar.
J - E participou em mais alguma atividade que estivesse relacionada com a igreja?
F - Chegava a ir a novenas, acho que agora isso já nem se faz.
J - O que eram essas novenas?
F - Novenas lá era uma pessoa que fazia uma promessa e tinha que levar nove pessoas com ela e ir a pé a algum lado, por exemplo, ir de Regadas à Santa Quitéria, que ficava em Felgueiras. O nosso vizinho uma vez até fez uma promessa dessas e andava a perguntar às crianças para irem com ele à Santa Quitéria, mas nós nem queríamos ir porque nós tínhamos medo dele por causa do vizinho ser coveiro.
J - Pertenceu a algum grupo da Igreja?
F - A minha mãe chegou a pertencer ao Grupo dos Franciscanos que havia e ainda há em Regadas mas eu, mesmo que quisesse, não podia porque era só para pessoas mais velhas e antes de eu crescer saí logo de casa para ir trabalhar.
J - O que recorda de Portugal no período em que nasceu?
F - Lembro-me de pouco, sei que havia muita miséria e que não havia a fartura que se vê hoje em dia. Na minha casa nunca se passou fome felizmente, mas também nunca tivemos muita coisa. Ainda me lembro que no natal as prendas que tinha era uma laranja e um chocolate pequenino, às vezes só a laranja ou duas tangerinas.
J - Lembra-se como era a vida no período regime salazarista?
F - Na minha aldeia não se falava muito da ditadura nem da PIDE, mas lembro-me que toda a gente ficava cheia de medo sempre que via a polícia. Eu até me lembro de quando era pequenita e via a polícia ia logo esconder-me, porque tinha medo deles.
Eu até me lembro que a minha irmã mais nova reprovou dois anos na escola, mas como tinha muito medo dos meus pais, principalmente do meu pai, disse-lhes que tinha passado e atirou com os livros ao rio. Só que quando começaram as aulas ela não voltou para a escola, e era obrigatório fazer a quarta classe, a polícia foi lá a casa e nós escondemo-nos todas debaixo da cama. Ela lá teve que voltar para a escola e os meus pais tiveram que comprar outros livros.
J - Acha que havia falta de liberdade?
F - Eu acho que as pessoas na altura tinham tanta miséria que nem pensavam muito nisso, tinham era de trabalhar para conseguir sobreviver.
J - E falta de oportunidades?
F - Claro que havia, eu e as minhas irmãs só andámos na escola, porque era obrigatória, se não fosse assim nem à escola tínhamos ido.
J - Os mais pobres tinham as mesmas oportunidades que os filhos “das boas famílias”?
F - Claro que não, eu quando tinha uns sete anos até cheguei a dizer que queria ser filha de uma pessoa lá da aldeia que vivia melhor que nós, porque apesar de nunca ter passado fome sempre tivemos que trabalhar muito para conseguir alguma coisa.
J - Sabia o que era a PIDE ou chegou a ouvir falar dela?
F - Ouvia-se falar mas que eu saiba a PIDE nunca esteve por lá, até porque a minha aldeia era um meio muito pequeno. Só se falava na polícia. Só que a polícia daquele tempo não é como a de agora, toda a gente tinha medo deles.
J - Que acontecimentos políticos, sociais vividos no país o marcaram mais?
F - Lembro-me que era obrigatório ir votar. A minha mãe esteve internada e foi uma ambulância buscá-la para ela ir votar porque era obrigatório.
Como fui para França não sabia de quase nada do que ia acontecendo em Portugal, mas lembro-me de estar lá e de saber da notícia da morte do Francisco Sá Carneiro. Na altura devia ter uns catorze ou quinze anos e não percebia muito bem mas lembro-me de toda a gente ter ficado em choque com a morte dele.
J - Tem alguma recordação do 25 de Abril?
F - Não, nós nem televisão tínhamos. Havia uma taberna em nossa casa que era o único sítio onde havia televisão e quando acontecia alguma coisa íamos a correr lá ver. Lembro-me que na altura se cantava muito aquela música do Zeca Afonso e eu cantava a música todos os dias, mas ainda só tinha nove anos e não percebia o significado.
J - Lembra-se do pároco da sua aldeia?
F - Lembro, chamavam-lhe Padre Agostinho só que ele fugiu, já não me lembro como foi essa história e depois foi para lá o Padre Manel que foi o padre que me casou.
J - O padre da paróquia tinha muita influência na aldeia?
Tinha muito poder sim, na altura era obrigatório ir à missa. Se nós não fossemos era porque os pais não nos estavam a dar uma boa educação. Nós chegávamos a ir à missa das seis da manhã aos domingos para depois irmos trabalhar no terreno em casa.
J - A paróquia desenvolvia algumas atividades?
F - Só faziam uma procissão na altura do S. Francisco em junho, de resto era sempre só a missa.
J - Lembra-se das atividades desenvolvidas pela Casa do Povo da sua aldeia?
F - A Casa do Povo da minha aldeia só era para dar consultas ou para ir apanhar injeções, que me lembre não faziam mais nada.
J - Os professores eram também pessoas com uma forte influência na comunidade. Como recorda os seus professores primários?
F - Eu tive duas professoras. Uma era a dona Emília, era muito má, batia-nos por qualquer coisa, andava sempre com a régua, eu chegava muitas vezes a casa com as mãos a fumegar. A outra tive pouco tempo, acho que só no último ano, já não me lembro do nome dela, mas já não era tão má como a primeira. Eu também não me lembro de muita coisa, nunca tinha tempo para estudar.
J - O chefe da família era o dirigente da casa?
F – Sim, mas só quando o meu pai vinha cá de França, ele só vinha uma ou duas vezes por ano.
J - A mulher tinha os mesmos direitos que o marido? Ou não?
F - Nem pensar. Se o meu pai dissesse que não a minha mãe não dizia mais nada. O meu pai até era muito mau para nós e batia-nos muitas vezes, às vezes a minha mãe tentava-nos proteger mas ela não mandava e o meu pai fazia o que queria.
J - O marido era fiel à esposa ou não?
F - Não sei mas na altura não se falava muito disso, acho que se escondia também muita coisa.
J - A mulher era autónoma? Tinha trabalho? Ou era doméstica?
F - A minha mãe, por exemplo, trabalhava mas o que ela ganhava não dava para quase nada, depois quando o meu pai foi para França ela acabou por ficar em casa a tomar conta de nós.
J - Os casais usavam métodos anticoncecionais ou não? Por quê?
F -Não, na altura nem se ouvia falar disso, pelo menos não no nosso meio.
J - Havia muitos abortos naturais e muita mortalidade infantil? Sabe por quê?
F - Havia alguma até na minha aldeia, cheguei a ir a muitos funerais de crianças vizinhas, já não sei como, mas deve ter sido com alguma doença como meningite.
Lembro-me até de ser ainda criança e de ficar assustada com aqueles caixões pequeninos brancos.
J - Sofreu alguma experiência traumática?
F - O meu pai sempre foi uma pessoa muito severa. Sempre achei que ele não gostava de nós, a minha irmã mais velha contou-me uma vez que chegou a ouvi-lo dizer que não gostava de nós. Depois como ele foi para França e vinha a Portugal poucas vezes estávamos poucas vezes com ele e depois ele batia-nos muito sem razão. A minha mãe tentava sempre defender-nos, mas ela também não podia fazer muito porque não mandava. Ele não era uma pessoa carinhosa, nunca cheguei a saber o que é um gesto de carinho dele. O meu pai só tinha mais carinho pelo meu irmão mais novo, talvez por ele ser o único rapaz e nós as quatro sermos raparigas.
J - Algum ente querido seu faleceu?
F - O meu pai faleceu com tuberculose aos quarenta e nove anos, dez dias depois de eu voltar de França de vez para Portugal. Foi um choque para mim porque era o meu pai, mas a verdade é que nunca convivi muito com ele, porque quando ele voltou de França, fui eu que fui para lá trabalhar.
J - Fez alguma loucura na sua vida?
F - A vida não me deu possibilidades de fazer nenhuma loucura, mas eu ir para França ainda uma criança pode ser uma loucura, só que fui trabalhar e não passear.
J - Tem alguma história em especial que nos queira contar?
F - Bem, eu era uma criança muito rebelde, gostava de subir aos castanheiros, na época das castanhas e sempre que vinha da escola subia a um castanheiro e ia a comer castanhas até casa. Só que uma vez eu pendurei-me numa daquelas camionetes da carreira que tinha umas grades atrás e ia assim muito tempo, só que a camionete travou de repente e eu caí e estive na cama durante quinze dias, porque não conseguia andar, tinha que ir um enfermeiro a casa curar-me, ainda tenho a cicatriz na perna direita.
Lembro-me também que, quando voltei de França, e fui trabalhar para Felgueiras, no fim do trabalho eu e a minha irmã íamos a pé para casa para poupar o dinheiro da camionete e demorávamos quase três horas a chegar a casa porque ainda era muito longe.
Há outra história engraçada. Na altura dos reis, quando voltava da escola, cantava sozinha os reis pelas casas todas para juntar dinheiro para poder comprar rebuçados. E então lá andava eu de porta em porta a cantar sozinha, mas davam-me sempre alguma coisa e eu lá podia comprar os rebuçados.
Comparação com o presente
J - O que lhe parece que mudou a nível político?
F - Mudou tudo, antes não se ouvia falar tanto em política e muito menos em partidos como agora, eu era nova no tempo do Salazar, mas lembro-me que não se falava em política e nem as pessoas se interessavam tanto, pelo menos na minha aldeia não.
J - E a nível económico?
F - É muito melhor agora. Eu tenho agora a vida que não tinha em criança e que os meus pais nunca tiveram. São dois mundos completamente diferentes.
Eu lembro-me que, como era a que tinha mais força de todas as irmãs era a que ia mais vezes ao monte buscar lenha e a minha mãe às vezes dava-me cinco coroas por causa de a ajudar. Eu pegava nesse dinheiro ia à mercearia comprar tulicreme e comia aquilo tudo na escola e era como se tivesse uma prenda. Hoje em dia não há necessidade disso porque há muita fartura.
J - Acha que é mais fácil conseguir emprego agora ou antes?
F - Antes era mais fácil encontrar trabalho, mas as pessoas também iam trabalhar para qualquer coisa que lhe desse dinheiro para sobreviverem, acho que o grande problema de hoje em dia é não haver espírito de sacrifício.
J - No aspeto familiar, como vê o aparecimento de novas formas de família, como por exemplo pais solteiros, divorciados, etc.?
F - Na altura não se falava de divórcio sequer na minha aldeia. Era como se fosse um grande pecado, mas acho que agora as pessoas estão mais abertas para isso mas na minha aldeia não se vêm casos desses.
J - Como vê a relação entre homem e mulher atualmente?
F - Agora não tem nada a ver com o que era antes, por exemplo, a relação que eu tenho com o meu marido é completamente diferente da dos meus pais. O meu pai é que mandava em tudo e quando ele dizia alguma coisa ninguém podia contrariar. Agora as coisas estão diferentes e acho que a mulher é mais importante.
J - O que acha que mudou mais desde os seus tempos de criança, até agora?
F - É difícil dizer isso porque quando penso em quando era pequena e como era a minha aldeia e as pessoas que moravam lá. É como se fosse um mundo diferente do que há hoje. Mas acho que o que mudou mais foram as oportunidades e a miséria, acho que as pessoas já não passam tanta dificuldade como antigamente.

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