quinta-feira, maio 24, 2012

História de vida de Luísa de Brito

Entrevistadora: Ana Marisa Amaral Macieira
Entrevistada / colaboradora: Luísa de Brito



AMAM - Como se chama?
LB - Luísa de Brito.
AMAM - Data de nascimento?
LB - 14 de dezembro de 1924.
AMAM Onde nasceu? Local de nascimento
LB - Lugar do Assento, freguesia de Palmeira, Braga.
Vida dos pais
AMAM - Como se chamam ou chamavam os seus pais?
LB - Francisco Fernandes Aurtures? e Maria Teresa de Brito
AMAM - De onde eram? Local e data de nascimento?    
LB - Pai – Lugar da Póvoa, Campo da Aviação, Palmeira, nasceu em 1867.
LB – Mãe – Lugar da Portela, Palmeira, 29 de março 1892.
AMAM - Sabe como eles se conheceram?
LB - Não.
AMAM Em que ano casaram?
LB - Não me lembro.
AMAM - Onde ficaram a viver?
LB - Em Palmeira.
AMAM - Quantos filhos tiveram?
LB - Três, os outros dois eram mais velhos, mas morreram antes de eu nascer. Tinha outra irmã mas só da parte do pai e era muito mais velha do que eu, morava em Lisboa.
AMAM - Qual a profissão do seu pai?
LB - Era laborista (esculpia a pedra), trabalhava a pedra para as igrejas e assim.
AMAM Qual a profissão da sua mãe?
LB - A minha mãe vendia fruta, em Braga.
AMAM - Dificuldades e facilidades da vida dos seus pais e da sua?
LB - Não havia dinheiro, mas foi boa, cantava-se e dançava-se, não era como agora.
A sua vida
AMAM - A Sr.ª nasceu em que ano?
LB - Em 1924.
AMAM - Quantos anos frequentou a escola?
LB - Nenhum. Eu morava à beira da escola, mas nunca fui porque nunca ninguém se importou. Eu via-os a brincar no recreio e aprendia as cantigas todas que eles cantavam. Mas sei as horas, porque eu era pequena e tinha de olhar por uma criança doentinha e tinha de lhe dar os remédios, então ensinaram-me a ver as horas! E sei contar muito bem, sei fazer contas de cabeça e “antes” sabia a tabuada toda de cabeça. Diziam que eu era muito esperta e que se tivesse ido à escola tinha dado uma doutora!
AMAM - Onde trabalhou?
LB - Vendia fruta com a minha mãe. Levantava-me às 5h da manhã e íamos ao Alívio esperar as mulheres que traziam a fruta das aldeias, vinham do Pico dos Regalados, Amares, Vila Verde, vinham aos bandos a pé por ali fora. E de Braga ao Pico levava quase 3h de caminho! Depois do Alívio ia a pé até ao centro de Braga aos armazéns e à praça (mercado) para vender a fruta. Também havia os laranjais e eu e minha mãe comprávamos e fazíamos mais dinheiro se fosse assim. Fazíamos uma rodilha e levávamos os cestos à cabeça, pesavam muito era conforme as encomendas.
Duma vez a Sr.ª Mariquinhas Ferraz, que tinha um armazém ali na Sé, recebeu uma encomenda de laranja azeda para doçaria para Lisboa e pediu-nos para lhe arranjar. “Atão” nós fomos arranjá-la à Veiga de Penso (quase em Famalicão) e a senhora tinha dois quintais (120kg) ainda passava 5kg (um quintal = 60kg), ela ficou admirada com a encomenda porque ninguém queria a laranja azeda e vendeu-nos aquilo tudo por 15 escudos. Nós apanhamos as laranjas e com cada nosso quintal, a passar, à cabeça lá viemos para Braga. Depois ao vir para cá paramos na Tasca do Juca em Figueiredo, comemos cada uma nosso pedaço de toucinho cozido com pão de milho e uma caneca de vinho e depois seguimos para Sé, mas aquilo subia muito e lá tivemos de parar outra vez na Ponte de Pelames “para dar um ar”. Quando chegamos à Sé, a Sr.ª Mariquinhas Ferraz olhou para nós, tão carregadas, e ficou tão admirada que diz ela: “Não há pai para vós”!
Ora bem, passavam 5kg dos dois quintais mas ela lá ficou com tudo e pagou 215 escudos por as laranjas! Partimos 100 escudos para cada uma, tirando os 15 do “casco”. Foi um rico negócio! Eu tinha sorte com a Graça de Deus!
Emigração
AMAM - Emigrou para o estrangeiro?
LB - Não emigrei, mas tive para emigrar! Em Palmeira, havia uma família rica que gostava muito de mim, e eles tinham uma menina muito ?? e queriam-me levar para fazer companhia à menina, eu devia ter 9 anos mais ou menos, e eles cortaram-me o cabelo à “garçone”, que naquele tempo era moda, mas depois a minha mãe não me deixou ir.
AMAM - Quando era jovem, como se divertia?
LB - Era só cantar e dançar, até ao domingo eu ia para praça vender com a minha mãe e depois quando chegávamos lá andavam as bandas a tocar com o cavaquinho e era tão giro que andava tudo a dançar, era solteiras, casadas andávamos todas.
AMAM - Quando e como conheceu o seu marido?
LB - Não me lembro, eu sempre o conheci, porque ele era de Palmeira e as famílias ainda se pertenciam.
AMAM - Quantos filhos tiveram?
LB - Oito! Mas três morreram, dois eram gémeos e nasceram antes do tempo e morreram no dia em que nasceram e a Inês morreu com um ano e meio com uma pneumonia. Naquele tempo, morriam muitos bebés e em Agosto é que era uma “limpeza”, diziam que era por causa das vacas comerem carocha do milho (o tronco) e diziam que fazia mal ao leite e depois os bebés bebiam e depois morriam.
Práticas religiosas
AMAM - Pratica /frequenta alguma religião?
AMAM - Pratico, ainda hoje fui à missa!
AMAM - Qual?
LB - Sou católica!
AMAM Andou na catequese?
LB - Andei sim senhor.
AMAM - Fez as comunhões? Crisma?
LB - Fiz a primeira comunhão com 7anos, e a comunhão solene e o crisma no mesmo dia tinha eu 10 anos.
AMAM - Ia nas procissões?
LB - Ia, cheguei a ir de anjo, havia a Fé, a Esperança e a Caridade, e eu fui de Caridade.
AMAM - Pertenceu a alguma congregação da igreja?
LB – Não.
AMAM - Foi mordomo de alguma festa religiosa?
LB - Fui da festa de S. Romão (DATA), pagava 5 “merreis” naquele tempo! E Fui de Beijamina (     ), paguei 1 “coroa”.
Opções políticas
AMAM Foi ativista político?
LB - Eu não, nunca gostei dessas coisas.
AMAM - Pertenceu a algum partido ou movimento?
LB - Não.
AMAM - Esteve preso no Antigo Regime?
LB - Não.
AMAM - Participou em manifestações?
LB - Também não.
AMAM - Foi apoiante do Regime Salazarista?
LB - O Salazar não era boa pessoa, ele tinha tudo e ninguém podia fazer nada. Eu fui multada duas vezes por andar descalça, e andava descalça para não romper os socos, porque depois não tinha dinheiro para mandar pôr as solas. Da primeira vez não paguei porque paga-se no Governador Civil e ele cheguei lá e era um mar de gente num largo que lá havia em frente e o Governador Civil veio à porta e viu tanta gente tanta gente que mandou tudo embora disse assim: “está tudo perdoado”!
Da segunda vez tive que pagar. Não se podia fazer nada se visse um “pobrinho” a pedir mandava-o prender.
Quando o Salazar foi eleito as “parolas” do Pico vinham por aí abaixo em carroças a cantar todas contentes até à cidade:
“A chita da minha blusa já se não usa foi para lavar,
Não quero a tua riqueza, quero a pobreza do Salazar!
A chita da minha blusa já se não usa foge demónio,
Não quero a tua riqueza quero a pobreza do meu António!”
Vinham contentes, se elas soubessem o que lhes ia “carregar” em cima!
AMAM - Pertenceu à polícia política de Salazar?
LB - Não senhor!
AMAM - Seguidor / admirador de Salazar?
LB - Não, eu não gostava dele.
AMAM - Seguidor / admirador de Marcelo Caetano?
LB - Também não.
AMAM - Por quê?
LB - Porque não gostava dele e não gostava dessas coisas.
AMAM - Viveu alguma catástrofe natural (cheias, temores de terra, derrocadas, guerra, exílio, etc.)?
AMAM - Tremor de terra e ciclone.
AMAM - Sofreu alguma experiência traumática?
LB - O primeiro ciclone que vi tinha eu 10 anos (1934), andei para aí 15 dias a tremer!
AMAM - Acidente?
LB - Tive há 4 anos quando ia num passeio com o centro social o “chaufer” esbarrou-se mas não me aleijei!
AMAM - Doença grave?
LB - Tive um derrame cerebral.
AMAM - Como encarou essa situação?
LB - Como um milagre, até a minha médica disse que foi um milagre.
AMAM - Fez alguma loucura na sua vida? (Amor, negócios, aventuras, fugas, etc.)
LB - Eu não.

Entrevista realizada dia 4 de abril de 2011, em Braga.

sexta-feira, abril 20, 2012

História de vida de Filomena Fonseca Alves

Filomena Fonseca Alves


Em França nascia o sol e aqui punha-se a luaAu Revoir Portugal!

Joana Dias - Como se chama?
Filomena Fonseca Alves - Filomena Fonseca Alves.
J - Quando nasceu?
F - 10 de Outubro de 1965.
J - Quantos anos tem?
F - 45 anos.
J - Onde nasceu?
F - Regadas, Fafe.
J - Lugar da residência atual coincide com o lugar de nascimento ou não? Por quê?
F – Não, porque fui trabalhar para outros sítios e depois, como o meu marido era de Felgueiras, depois do casamento mudei-me para lá
J - Quantos irmãos teve?
F - Tive quatro: três irmãs e um irmão.
J - A sua família tinha uma alcunha?
F - Tínhamos, chamavam-nos de Vitorinos.
J - E por quê?
F - Não sei porquê esse nome, mas sei que o nome veio da família do meu pai.
J - Como se chamam ou chamavam os seus pais?
F - Pai: José Maria Fonseca Alves
F - Mãe: Maria de Lurdes Alves Fonseca
J - De onde eram?
F - Local de nascimento do pai: Lugar da Trofa, Pombeiro - Felgueiras
F - Local de nascimento da mãe: Regadas – Fafe.
J - Sabe em que ano nasceram?
F - Não me lembro do ano certo, mas sei que foi pela década de 30.
Maria de Lurdes Alves Fonseca nasceu no ano de 1934.
J - Sabe como eles se conheceram?
F - A minha mãe estava em Felgueiras a servir e como o meu pai era de lá eles conheceram-se. Namoraram durante nove anos, entretanto zangaram-se durante três anos e depois voltaram a namorar, mas casaram tarde para a altura, porque a minha mãe já casou com 26 anos.
J - Essa expressão de “estar a servir” não se costuma ouvir hoje em dia, o que quer dizer?
F - Mas dantes usava-se muito e as pessoas mais velhas ainda usam, a minha mãe foi trabalhar para casa de um casal que tinha possibilidades para ter uma empregada e a minha mãe fazia tudo o que era preciso fazer e também tomava conta dos filhos dos patrões. Tinha que limpar, cozinhar e tudo o que fosse preciso fazer.
J - Em que ano casaram?
F - Casaram no ano em que a minha irmã mais velha nasceu, portanto foi em 1960. Não me lembro do dia, mas lembro-me de a minha mãe me contar que casaram às sete da manhã no Mosteiro de Pombeiro e que depois almoçaram massa com feijão.
J - Tem alguma fotografia do casamento dos seus pais?
F - Não, naquele tempo não tinham dinheiro e o casamento foi mesmo muito simples.
J - Onde ficaram a viver?
F - Depois de se casarem foram morar para a casa da minha avó materna em Regadas, agora mora lá uma senhora que depois dos meus avós morrerem compraram a casa, mas ela continua igual, porque não mudaram a fachada.
J - Quantos filhos tiveram?
F - Tiveram quatro raparigas e um rapaz, eu sou a terceira mais velha.
J - Qual a profissão do seu pai?
F - Era sapateiro, mas depois nos anos 60 foi para França e lá trabalhava nas obras.
J - Qual a profissão da sua mãe?
F - A minha mãe tirava areia do rio com um rodo para as casas, trazia a areia para a estrada num cesto e ia lá um trator buscar. Quando era ainda nova, no fim da escola chegava a ir muitas vezes ter com ela para ajudá-la a levar os cestos com areia para a estrada.
J - O que é um rodo?
F - Um rodo é tipo um engaço com uns furos e pesado para conseguir ir até ao fundo e depois puxar a areia para as bermas. Aquilo era tapado e só tinha os buraquinhos para a água sair e puxar só a areia.
J - A sua família passava por dificuldades?
F - O meu pai faleceu quando eu tinha dezoito anos e como ele foi para França e vinha poucas vezes a casa sempre tive pouco contacto com ele, mas a minha mãe diz que comida nunca faltou. Era uma casa onde se matava o porco e tínhamos galinhas. O conforto não era muito, mas comida havia sempre.
J - Nasceu em casa ou no hospital?
F - Em casa.
J - Mas houve a assistência de alguém com habilitações para fazer um parto?
F - Não, nós chamávamos-lhe uma habilidosa, era uma pessoa que tinha jeito para fazer partos e fazia os partos todos da aldeia. Só o meu irmão mais novo é que nasceu no hospital, eu e o resto das minhas irmãs nascemos todas em casa.
J - Teve possibilidades de estudar?
F - Não, quer dizer, estudei até à quarta classe, mas porque era obrigatório porque se não fosse se calhar nem tinha ido para a escola.
J - Quantos anos frequentou a escola?
F - Estive cinco anos, reprovei na terceira classe ,mas foi porque nunca tinha tempo para estudar porque logo que chegava da escola tinha que ir ou cavar o terreno que tínhamos, ou ir ao monte buscar lenha ou tinha que ir ajudar a minha mãe. No verão, como o tempo era mais quente eu e as minhas irmãs acordávamos às cinco ou seis da manhã, antes de irmos para a escola, para irmos buscar pinhas ao monte.
J - Onde estudou?
F - Estudei na escola de Regadas, na aldeia onde nasci.
J - Seguiu a profissão de algum dos seus pais?
F - Segui a da minha mãe, porque a minha primeira profissão também foi ir servir para casa de uma prima.
J - Escolheu a sua profissão livremente ou foi imposta pelos seus pais ou pelas circunstâncias da vida?
F - Foram as duas coisas, porque eu comecei a trabalhar logo que saí da escola e ainda era uma criança e não sabia o que era melhor para mim, mas também tinha de ir trabalhar para ajudar em casa, porque os meus pais não tinham possibilidades.
J - Como conseguiu os seus empregos?
F - Foi através dos meus pais, porque fui servir para uma prima. Logo no dia depois de eu acabar a quarta classe os meus primos foram buscar-me a casa para eu ir trabalhar para casa deles, porque eles tinham um filho pequeno e como trabalhavam numa fábrica precisavam que alguém tomasse conta dele. Eu lembro-me que chorei muito, porque não queria ir e então a minha mãe pediu ao meu pai para me deixar ficar mais uns dias em casa. Entretanto passado uma semana, eles foram buscar-me e foi a primeira vez que eu saí de casa, porque eles eram de Felgueiras e eu ficava lá em casa deles a dormir, só vinha ao fim de semana a casa, tinha eu dez anos.
J - Aprendeu uma profissão?
F - Não porque eu estive sempre a servir em casa de pessoas e o que tinha que fazer eram sempre coisas que fazia em casa desde pequena.
J - Teve sempre a mesma residência ou mudou de lugar?
F - Mudei quando tive o primeiro trabalho que era em Felgueiras, mas não fiquei muito tempo lá, porque os meus patrões não eram meus amigos e não me tratavam muito bem. Quando me fui embora a minha prima até me obrigou a devolver-lhe umas meias que me tinha dado, porque se me ia embora não podia ficar com elas.
Depois, quando já tinha 11 anos fui servir para uma senhora que era enfermeira que morava perto de minha casa, mas dormia em casa dela, não ia para casa. Essa senhora era muito minha amiga, ainda me lembro do nome dela, chamava-se dona Rosa.
Quando voltei para Portugal fui morar para a minha aldeia com a minha mãe e as minhas irmãs, mas quando me casei mudei-me para Felgueiras porque o meu marido é de cá.
A grande mudança foi mesmo quando fui para França, porque andei sempre entre Felgueiras e Fafe que são à beira uma da outra.
J - Emigrou para o estrangeiro?
F - Sim, para França
J - Quando foi?
F - Fui no início setembro de 1977, porque lembro-me que quando fiz doze anos já estava em França. Foi também quando tirei as minhas primeiras fotografias daquelas de passe, porque era preciso para o passaporte.
J - Por quê?
F - À beira da senhora onde eu estava a servir, da dona Rosa, havia uma loja de retalhos de tecidos, e a dona da loja, que se chamava Miquinhas, tinha uma sobrinha que estava em França que precisava de uma empregada, porque deixar os filhos no infantário lá ficava mais caro e então a dona da loja como me conhecia perguntou-me se eu queria ir para França trabalhar e resolveu tudo em 15 dias.
J - O que acharam os seus pais de ir para tão longe?
F - O meu pai tinha estado em França também, na altura, já tinha voltado de vez, mas ele incentivou-me porque dizia que era um país bom e que ia ganhar mais.
J - Quanto ganhava lá?
F - Lá ganhava seis contos por mês e aqui ganhava mil escudos, era uma diferença muito grande. Mas eu não recebia o dinheiro, porque a minha patroa mandava o dinheiro para os meus pais. Uma vez o meu pai mandou uma carta à minha patroa para lhe mandar seis meses adiantados, porque precisava de comprar uma motosserra.
J - Mas se não recebia nada do ordenado, como fazia se precisasse ou quisesse comprar alguma coisa?
F - Eu ainda era uma criança e morava com os meus patrões, eles davam-me roupa quando precisava e eu nunca saía de casa, quando saía era com eles ou para ir comprar pão de manhã e para ir levar os dois filhos dos meus patrões à escola.
J - Foi sozinha para França?
F - Não, a sobrinha da Miquinhas veio buscar-me a Portugal e foi ela que pagou o passaporte, porque os meus pais não tinham possibilidades, fomos de comboio e demorámos dois dias a chegar, ela morava em Paris. Foi a primeira vez que andei de comboio e lembro-me que até tinha camas no comboio.
J - Quantos anos aí ficou?
F - Fiquei quase sete anos.
J- A adaptação foi fácil ou difícil?
F - Não foi fácil. Quando cheguei lá era tudo estranho para mim. Fui morar para um prédio com quinze andares, nós morávamos no quarto andar e as pessoas eram muito diferentes das da minha aldeia. Só naquele prédio havia todo o tipo de gente, chineses e marroquinos, por exemplo. Mas eu também não saía muito porque eu também não sabia falar francês e não falava com ninguém.
Passei lá os natais todos, só vinha a casa em agosto e não vim todos os anos, porque eu nem estive no casamento da minha irmã mais velha, porque estava ainda em França e não tinha dinheiro para vir e quando o meu irmão mais novo nasceu também estava lá e só o conheci mais tarde.
J - Fez alguma amizade enquanto estava em França?
F - Não, eu sentia-me muito sozinha lá, muitas vezes passava as noites a chorar, porque não tinha lá ninguém e nem tinha tempo para passear, passava o dia a trabalhar e quando saía era sempre com os meus patrões. Ainda cheguei a conhecer uma senhora que era de Castelo Branco que morava no mesmo prédio que eu, no décimo segundo andar, e como ela era doméstica ia levar os filhos à escola e eu ia às vezes com ela levar os filhos dos meus patrões e era a única pessoa com quem eu falava mais.
J - Lembra-se do nome dessa senhora?
F - Lembro, chama-se Carminda.
J - Quando regressou?
F - Voltei quando tinha dezoito anos, em 1983.
J - Depois de voltar manteve contacto ou voltou a falar com a senhora Carminda?
F - Não, ela ficou lá e deve ter feito a vida dela lá, porque já tinha dois filhos que andavam lá na escola e nunca mais soube nada dela.
J - Por que regressou?
F - Nunca gostei de estar lá e, na altura, os meus patrões tinham que me fazer os papéis para eu ficar legal só que como eles não queriam essa responsabilidade e eles também nunca foram meus amigos.
J - Não se arrependeu de voltar?
F - Eu gostava de Paris, mas não me arrependi de voltar, porque estava longe de toda a gente e foi muito duro. Eu passava os domingos no meu quarto a ler e reler as cartas que a minha mãe e as minhas irmãs me mandavam, porque as saudades eram muitas.
Eu sentia muito a falta deles, estava muito tempo sem os ver até porque dez dias depois de eu voltar de França o meu pai faleceu com 49 anos.
J - E guardou alguma dessas cartas?
F - Não, acho que deitei fora quando voltei de lá.
J – É casada?
F – Sim.
J – Como se chama o seu marido?
F- José Isménio Ferreira Dias.
J- Quantos filhos tem?
F – Duas filhas, uma com vinte e três e outra com doze anos. A mais velha chama-se Joana Dias e a mais nova Ana Margarida Dias.
J - Quando era jovem, como se divertia?
F - Nunca brinquei nem me diverti, sempre que chegava a casa da escola tinha que ir logo ajudar na casa ou no terreno que tínhamos. Na minha aldeia, havia o S. Francisco mas o meu pai nunca nos deixava ir, ficávamos sempre em casa.
Quando fui para França ia às vezes sair com os meus patrões ao fim de semana àquelas festas de emigrantes, mas eu não me lembro muito bem, porque era novita. Lembro-me que uma vez vimos a Linda de Suza, uma que cantava a mala de cartão, na altura era muito conhecida. Ela até chegou num helicóptero, era muito famosa na altura. Mas na maioria das vezes punha-me na janela do meu quarto a ver a Torre Eiffel, dava para ver de lá e eu ficava admirada com um monumento tão grande.
J - Quando e como conheceu o seu marido?
F - Por acaso é uma história engraçada, porque nós vimo-nos pela primeira vez quando eu tinha onze que foi quando vim trabalhar para Felgueiras e ele engraçou comigo, porque ele até andava assim atrás de mim só que depois eu saí daqui e fui trabalhar para a minha terra e nunca mais o vi. Depois só nos voltámos a encontrar quando eu já tinha dezanove anos, em 1984, e fui trabalhar para um fábrica de calçado em Felgueiras, depois de voltar de França.
A minha irmã mais nova trabalhava na mesma fábrica que eu e nós íamos para o trabalho de camioneta e depois para voltar ao fim do dia tínhamos que esperar uma hora pela camionete. O meu marido andava por lá, até na altura andava com uma rapariga que era da minha aldeia e depois ele voltou a conhecer-me, depois de tantos anos e voltou a engraçar comigo.
J- Tem correspondência do seu namoro?
F - Não, nós nunca chegámos a trocar cartas.
J - Tem fotografias tiradas durante o seu namoro?
F - Não chegámos a tirar nenhuma fotografia juntos enquanto namorávamos.
J - Quando casaram? Onde?
F - Nós começámos a namorar em setembro de 1984 e casámos a 18 de agosto de 85. Casámos na Igreja de Santo Estevão na freguesia onde nasci, em Regadas (Fafe).
J - Onde ficaram a morar?
F – Fomos morar para a terra do meu marido e ficámos a viver na casa dos meus sogros em Felgueiras na freguesia de Pombeiro de Ribavizela.
J - Praticava ou frequentava alguma religião?
F - A minha família era toda católica e eram muito religiosos. Quando era pequena ia sempre à missa todos os domingos. Depois do meu pai falecer a minha mãe até começou a ir à missa todos os dias, só não ia se não houvesse.
J - Andou na catequese?
F - Andei, mas só até à primeira comunhão, já não fiz comunhão solene nem crisma, fui trabalhar ainda nova e deixei de ir por causa do trabalho. Mas tenho uma foto da primeira comunhão, porque até quem foi a minha madrinha foi uma vizinha que era solteira e eu gostava muito dela.
J - Participava nas festas da paróquia da sua aldeia?
F - Sim, em Regadas ainda se festeja o S. Francisco e eu ia sempre na procissão vestida de anjinho, só deixei de ir depois que deixei a escola e fui trabalhar.
J - E participou em mais alguma atividade que estivesse relacionada com a igreja?
F - Chegava a ir a novenas, acho que agora isso já nem se faz.
J - O que eram essas novenas?
F - Novenas lá era uma pessoa que fazia uma promessa e tinha que levar nove pessoas com ela e ir a pé a algum lado, por exemplo, ir de Regadas à Santa Quitéria, que ficava em Felgueiras. O nosso vizinho uma vez até fez uma promessa dessas e andava a perguntar às crianças para irem com ele à Santa Quitéria, mas nós nem queríamos ir porque nós tínhamos medo dele por causa do vizinho ser coveiro.
J - Pertenceu a algum grupo da Igreja?
F - A minha mãe chegou a pertencer ao Grupo dos Franciscanos que havia e ainda há em Regadas mas eu, mesmo que quisesse, não podia porque era só para pessoas mais velhas e antes de eu crescer saí logo de casa para ir trabalhar.
J - O que recorda de Portugal no período em que nasceu?
F - Lembro-me de pouco, sei que havia muita miséria e que não havia a fartura que se vê hoje em dia. Na minha casa nunca se passou fome felizmente, mas também nunca tivemos muita coisa. Ainda me lembro que no natal as prendas que tinha era uma laranja e um chocolate pequenino, às vezes só a laranja ou duas tangerinas.
J - Lembra-se como era a vida no período regime salazarista?
F - Na minha aldeia não se falava muito da ditadura nem da PIDE, mas lembro-me que toda a gente ficava cheia de medo sempre que via a polícia. Eu até me lembro de quando era pequenita e via a polícia ia logo esconder-me, porque tinha medo deles.
Eu até me lembro que a minha irmã mais nova reprovou dois anos na escola, mas como tinha muito medo dos meus pais, principalmente do meu pai, disse-lhes que tinha passado e atirou com os livros ao rio. Só que quando começaram as aulas ela não voltou para a escola, e era obrigatório fazer a quarta classe, a polícia foi lá a casa e nós escondemo-nos todas debaixo da cama. Ela lá teve que voltar para a escola e os meus pais tiveram que comprar outros livros.
J - Acha que havia falta de liberdade?
F - Eu acho que as pessoas na altura tinham tanta miséria que nem pensavam muito nisso, tinham era de trabalhar para conseguir sobreviver.
J - E falta de oportunidades?
F - Claro que havia, eu e as minhas irmãs só andámos na escola, porque era obrigatória, se não fosse assim nem à escola tínhamos ido.
J - Os mais pobres tinham as mesmas oportunidades que os filhos “das boas famílias”?
F - Claro que não, eu quando tinha uns sete anos até cheguei a dizer que queria ser filha de uma pessoa lá da aldeia que vivia melhor que nós, porque apesar de nunca ter passado fome sempre tivemos que trabalhar muito para conseguir alguma coisa.
J - Sabia o que era a PIDE ou chegou a ouvir falar dela?
F - Ouvia-se falar mas que eu saiba a PIDE nunca esteve por lá, até porque a minha aldeia era um meio muito pequeno. Só se falava na polícia. Só que a polícia daquele tempo não é como a de agora, toda a gente tinha medo deles.
J - Que acontecimentos políticos, sociais vividos no país o marcaram mais?
F - Lembro-me que era obrigatório ir votar. A minha mãe esteve internada e foi uma ambulância buscá-la para ela ir votar porque era obrigatório.
Como fui para França não sabia de quase nada do que ia acontecendo em Portugal, mas lembro-me de estar lá e de saber da notícia da morte do Francisco Sá Carneiro. Na altura devia ter uns catorze ou quinze anos e não percebia muito bem mas lembro-me de toda a gente ter ficado em choque com a morte dele.
J - Tem alguma recordação do 25 de Abril?
F - Não, nós nem televisão tínhamos. Havia uma taberna em nossa casa que era o único sítio onde havia televisão e quando acontecia alguma coisa íamos a correr lá ver. Lembro-me que na altura se cantava muito aquela música do Zeca Afonso e eu cantava a música todos os dias, mas ainda só tinha nove anos e não percebia o significado.
J - Lembra-se do pároco da sua aldeia?
F - Lembro, chamavam-lhe Padre Agostinho só que ele fugiu, já não me lembro como foi essa história e depois foi para lá o Padre Manel que foi o padre que me casou.
J - O padre da paróquia tinha muita influência na aldeia?
Tinha muito poder sim, na altura era obrigatório ir à missa. Se nós não fossemos era porque os pais não nos estavam a dar uma boa educação. Nós chegávamos a ir à missa das seis da manhã aos domingos para depois irmos trabalhar no terreno em casa.
J - A paróquia desenvolvia algumas atividades?
F - Só faziam uma procissão na altura do S. Francisco em junho, de resto era sempre só a missa.
J - Lembra-se das atividades desenvolvidas pela Casa do Povo da sua aldeia?
F - A Casa do Povo da minha aldeia só era para dar consultas ou para ir apanhar injeções, que me lembre não faziam mais nada.
J - Os professores eram também pessoas com uma forte influência na comunidade. Como recorda os seus professores primários?
F - Eu tive duas professoras. Uma era a dona Emília, era muito má, batia-nos por qualquer coisa, andava sempre com a régua, eu chegava muitas vezes a casa com as mãos a fumegar. A outra tive pouco tempo, acho que só no último ano, já não me lembro do nome dela, mas já não era tão má como a primeira. Eu também não me lembro de muita coisa, nunca tinha tempo para estudar.
J - O chefe da família era o dirigente da casa?
F – Sim, mas só quando o meu pai vinha cá de França, ele só vinha uma ou duas vezes por ano.
J - A mulher tinha os mesmos direitos que o marido? Ou não?
F - Nem pensar. Se o meu pai dissesse que não a minha mãe não dizia mais nada. O meu pai até era muito mau para nós e batia-nos muitas vezes, às vezes a minha mãe tentava-nos proteger mas ela não mandava e o meu pai fazia o que queria.
J - O marido era fiel à esposa ou não?
F - Não sei mas na altura não se falava muito disso, acho que se escondia também muita coisa.
J - A mulher era autónoma? Tinha trabalho? Ou era doméstica?
F - A minha mãe, por exemplo, trabalhava mas o que ela ganhava não dava para quase nada, depois quando o meu pai foi para França ela acabou por ficar em casa a tomar conta de nós.
J - Os casais usavam métodos anticoncecionais ou não? Por quê?
F -Não, na altura nem se ouvia falar disso, pelo menos não no nosso meio.
J - Havia muitos abortos naturais e muita mortalidade infantil? Sabe por quê?
F - Havia alguma até na minha aldeia, cheguei a ir a muitos funerais de crianças vizinhas, já não sei como, mas deve ter sido com alguma doença como meningite.
Lembro-me até de ser ainda criança e de ficar assustada com aqueles caixões pequeninos brancos.
J - Sofreu alguma experiência traumática?
F - O meu pai sempre foi uma pessoa muito severa. Sempre achei que ele não gostava de nós, a minha irmã mais velha contou-me uma vez que chegou a ouvi-lo dizer que não gostava de nós. Depois como ele foi para França e vinha a Portugal poucas vezes estávamos poucas vezes com ele e depois ele batia-nos muito sem razão. A minha mãe tentava sempre defender-nos, mas ela também não podia fazer muito porque não mandava. Ele não era uma pessoa carinhosa, nunca cheguei a saber o que é um gesto de carinho dele. O meu pai só tinha mais carinho pelo meu irmão mais novo, talvez por ele ser o único rapaz e nós as quatro sermos raparigas.
J - Algum ente querido seu faleceu?
F - O meu pai faleceu com tuberculose aos quarenta e nove anos, dez dias depois de eu voltar de França de vez para Portugal. Foi um choque para mim porque era o meu pai, mas a verdade é que nunca convivi muito com ele, porque quando ele voltou de França, fui eu que fui para lá trabalhar.
J - Fez alguma loucura na sua vida?
F - A vida não me deu possibilidades de fazer nenhuma loucura, mas eu ir para França ainda uma criança pode ser uma loucura, só que fui trabalhar e não passear.
J - Tem alguma história em especial que nos queira contar?
F - Bem, eu era uma criança muito rebelde, gostava de subir aos castanheiros, na época das castanhas e sempre que vinha da escola subia a um castanheiro e ia a comer castanhas até casa. Só que uma vez eu pendurei-me numa daquelas camionetes da carreira que tinha umas grades atrás e ia assim muito tempo, só que a camionete travou de repente e eu caí e estive na cama durante quinze dias, porque não conseguia andar, tinha que ir um enfermeiro a casa curar-me, ainda tenho a cicatriz na perna direita.
Lembro-me também que, quando voltei de França, e fui trabalhar para Felgueiras, no fim do trabalho eu e a minha irmã íamos a pé para casa para poupar o dinheiro da camionete e demorávamos quase três horas a chegar a casa porque ainda era muito longe.
Há outra história engraçada. Na altura dos reis, quando voltava da escola, cantava sozinha os reis pelas casas todas para juntar dinheiro para poder comprar rebuçados. E então lá andava eu de porta em porta a cantar sozinha, mas davam-me sempre alguma coisa e eu lá podia comprar os rebuçados.
Comparação com o presente
J - O que lhe parece que mudou a nível político?
F - Mudou tudo, antes não se ouvia falar tanto em política e muito menos em partidos como agora, eu era nova no tempo do Salazar, mas lembro-me que não se falava em política e nem as pessoas se interessavam tanto, pelo menos na minha aldeia não.
J - E a nível económico?
F - É muito melhor agora. Eu tenho agora a vida que não tinha em criança e que os meus pais nunca tiveram. São dois mundos completamente diferentes.
Eu lembro-me que, como era a que tinha mais força de todas as irmãs era a que ia mais vezes ao monte buscar lenha e a minha mãe às vezes dava-me cinco coroas por causa de a ajudar. Eu pegava nesse dinheiro ia à mercearia comprar tulicreme e comia aquilo tudo na escola e era como se tivesse uma prenda. Hoje em dia não há necessidade disso porque há muita fartura.
J - Acha que é mais fácil conseguir emprego agora ou antes?
F - Antes era mais fácil encontrar trabalho, mas as pessoas também iam trabalhar para qualquer coisa que lhe desse dinheiro para sobreviverem, acho que o grande problema de hoje em dia é não haver espírito de sacrifício.
J - No aspeto familiar, como vê o aparecimento de novas formas de família, como por exemplo pais solteiros, divorciados, etc.?
F - Na altura não se falava de divórcio sequer na minha aldeia. Era como se fosse um grande pecado, mas acho que agora as pessoas estão mais abertas para isso mas na minha aldeia não se vêm casos desses.
J - Como vê a relação entre homem e mulher atualmente?
F - Agora não tem nada a ver com o que era antes, por exemplo, a relação que eu tenho com o meu marido é completamente diferente da dos meus pais. O meu pai é que mandava em tudo e quando ele dizia alguma coisa ninguém podia contrariar. Agora as coisas estão diferentes e acho que a mulher é mais importante.
J - O que acha que mudou mais desde os seus tempos de criança, até agora?
F - É difícil dizer isso porque quando penso em quando era pequena e como era a minha aldeia e as pessoas que moravam lá. É como se fosse um mundo diferente do que há hoje. Mas acho que o que mudou mais foram as oportunidades e a miséria, acho que as pessoas já não passam tanta dificuldade como antigamente.

sábado, fevereiro 18, 2012

História de Vida de Alfredo Machado da Costa e Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa na 2ª metade do séc. XX






Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa




Alfredo Machado da Costa
Assis Gaspar Machado Monteiro (AGMM):Mãe! Gostaria muito que me falasse da sua história de vida, das suas origens familiares, da sua formação educacional do tempo em que conheceu o pai, para desta forma ficar a conhecer melhor a vossa trajetória de vida.
Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa (EGGQC): Nem sei por onde começar, mas começo por dizer que os meus pais residiam numa aldeia que se chamava Macieira pertencia à Freguesia de Limões, concelho de Ribeira de Pena, a minha mãe chamava-se Teresa Gomes Gaspar, nasceu em 30 de Abril de 1925 e era natural de outro município, Mondim de Basto. Meu pai, Manuel Joaquim Gonçalves Queirós, não me lembro da data de nascimento, era de Macieira, onde casou e passou a viver com a minha mãe. Meus pais eram pequenos agricultores, viviam sobretudo da agricultura e da pastorícia. A minha mãe era doméstica, tratava da casa, dos filhos e dedicava-se à atividade da tecelagem. Os materiais utilizados, na tecelagem, eram produzidos em casa. Cultivávamos o linho e fazíamos toda a sua transformação, para fazer toalhas, colchas que depois vendíamos para fora, Lisboa, Porto e, às vezes, para estrangeiro na altura da emigração.
 Da pastorícia, fazíamos o aproveitamento da lã que transformada dava para fazer as meias, os cobertores, as cobertas, a minha mãe costumava tingir com cores para ficarem mais bonitas. Eu nasci em Macieira, em casa, a parteira que assistiu ao parto, chamava-se D. Rosa, ela era a parteira de serviço na aldeia, não havia hospitais pois a nossa aldeia era muito isolada, não tinha acesso terrestre a carros, só havia estrada a 5 Km.
 Eu andei na escola primária da aldeia onde completei a terceira classe, tendo que abandonar logo, tinha que ajudar em casa e não havia dinheiro para estudar. Eu tinha mais 8 irmãos, três rapazes e 5 raparigas, uma das meninas faleceu com meningite aos 18 meses de idade - deixou de ver, nem sabíamos muito bem o que se passava.
 A vida dos meus pais foi muito difícil, não havia ajudas de parte alguma, vivíamos o regime de Salazar, como éramos muitos filhos, mais difícil era, havia grandes necessidades mesmo de alguns bens essenciais, logo desde pequeninos começávamos a ajudar os pais na lida da lavoura, do que dava a terra não havia fome, mas não havia mimos como agora, tínhamos pouco dinheiro e não havia onde comprar.
 A minha infância foi muito dura e difícil, pois com 12 anos de idade fiquei órfã de pai.
 O meu pai foi para Lisboa para melhorar as nossas vidas e acabou por falecer vítima de uma pneumonia e poucos cuidados. Estava lá sozinho, não tinha seguro, trabalhava clandestinamente, foi terrível, não tínhamos condições económicas para o trazer para a aldeia e acabou por ficar em Lisboa, sinto um grande desgosto principalmente pela família, pois podiam ter ajudado e eu podia ter o meu pai perto de nós, assim, nem pude prestar-lhe uma última homenagem, só a minha mãe foi lá.
 Eu, como era a mais velha, recaiu sobre mim muito trabalho e responsabilidade, tinha que ajudar a minha mãe, e a partir desta altura as nossas vidas ainda se complicaram mais. Passamos muitas dificuldades a todos os níveis principalmente ao nível económico, foi muito difícil, tivemos uma vida marcada pela dureza e miséria, éramos muitos irmãos, não havia ajudas do estado como há hoje, durante a minha juventude, para ganhar algum dinheiro ia trabalhar para a floresta, pois perto da minha aldeia estava-se a fazer a reposição da floresta e requisitavam pessoas para trabalhar, pagavam 5 tostões ao dia (trabalhávamos de sol a sol), durante o ano todo, era uma forma de ganharmos algum dinheiro para fazer face a outras despesas, mesmo assim passava-se muitas necessidades, era uma vida muito dura, as condições em que vivíamos eram péssimas, não havia água, nem luz, utilizávamos o petróleo para ver ou velas, a lenha para cozinhar “miséria absoluta”.
AGMM: Tem alguma fotografia de quando era jovem? Pode mostrar-ma?
EGQGC: Tenho uma, mas já era praticamente adulta, pois naquele tempo quem tirava fotografias! Não havia máquinas, nem dinheiro, só começou a haver fotografias quando o teu pai foi para Alemanha, ele comprou logo uma máquina.
AGMM: Quando conheceu o pai? O que sabe das suas origens?
EGQGC: Conheci o teu pai na minha mocidade, pois ele vivia numa aldeia vizinha da nossa, chamava-se, Limões. O teu pai chamava-se Alfredo Machado da Costa, nasceu em 25 de Junho de 1940 nessa aldeia, pertencia ao concelho de Ribeira de Pena, os teus avós paternos chamavam-se Maria das Dores Gonçalves Geiroto e Alfredo Machado da Costa, o teu pai tinha o nome igualzinho ao seu pai, ele tinha mais 5 irmãos, duas raparigas e três rapazes, tinham a alcunha “Geiroto” talvez porque a tua avó tinha no nome Geiroto. As aldeias onde morávamos distavam apenas 5 quilómetros, costumávamos de nos juntar nas pequenas festas da aldeia, nas novenas, na missa dominical na igreja, nas romarias e nos trabalhos de campo, quando eram trabalhos grandes como as “cegadas e as malhadas”.
AGMM: Tem alguma fotografia do pai enquanto jovem? Com a família dele? Sabe de onde eram os avós paternos?
EGGQC: Sim, tenho uma fotografia onde estão os pais dele e duas irmãs. A tua avó era da minha aldeia, Macieira, era já uma casa de Lavoura de agricultores abastados, o teu avô era da Povoa, pertencia a Ribeira de Pena. Casaram-se e vieram viver para Macieira onde nasceram os primeiros quatro filhos. Viviam da agricultura, mas o teu avô era um homem ambicioso e vendeu tudo em Macieira para ir para Limões, onde comprou uma grande lavoura, lá nasceram mais dois filhos, teu pai e uma irmã. Em Limões embora sendo apenas a 5 quilómetros de distância já havia melhores condições de vida, a nível da agricultura havia a produção de vinho, fruta, era um clima mais ameno e dava-se lá tudo. Daquilo que dava a terra era uma casa “farta” não faltava nada, dedicavam-se também à pecuária criação de gado bovino.
AGMM: Fale-me um pouco de si, onde nasceu, o lugar da residência atual coincide com o de nascimento?
EGGQC: Eu nasci a 31 de Março de 1948, em Macieira, pelas mãos da D. Rosa, a parteira e amiga da família. Fiz apenas a terceira classe, pois não havia possibilidades de estudar. Segui a profissão da minha mãe, porque não havia meios para aprender outra e como fiquei órfã de pai muito cedo, tive que ajudar a criar os meus irmãos. A minha profissão foi imposta pelas circunstâncias da vida, foram anos de muita luta e muita necessidade a todos os níveis.
 Aos 22 anos de idade, mudei de vida, tive a possibilidade de emigrar para Alemanha, porque as condições em que vivíamos no nosso país eram miseráveis, era uma ditadura, e perante esta oportunidade não olhei para o lado, lembro com muito pesar, pois deixava a minha família para trás, em busca do desconhecido, a dificuldade da língua, tudo difícil, mas duma coisa tinha a certeza, eu queria mudar a minha vida, e não queria viver daquele modo para sempre “fui à luta”.
AGMM: Quer contar-me como foi esse percurso da sua vida? O pai! Já fazia parte desse projeto? Ou ainda não?
EGGQC: Eu conheci o teu pai antes de emigrar, em 1970, iniciamos o nosso namoro, tenho duas fotos desse tempo que te posso mostrar. O teu pai já estava em Alemanha, emigrou mais cedo. Eu fui para Alemanha com uma irmã e sob a proteção de um tio que nos deu guarida e todo o apoio no início, que por coincidência mais tarde veio a ser meu cunhado, ou seja é irmão do teu pai, graças a ele pudemos apresentar uma morada, doutro modo não assinávamos o contrato de trabalho, isso era a condicionante principal. Sem casa, não era possível. Antes de irmos, fomos obrigadas a ir a uma junta médica, pois se fossemos portadoras de alguma doença já não embarcávamos.
 Após a chegada a Alemanha, efetuei o registo oficial no consulado Português em 23 de Abril de 1970, como podes ver no registo escrito, na cidade de Frankfurt.
 No dia útil seguinte, fui trabalhar para uma empresa de limpeza, num grande hospital em Langen, onde exerci funções durante 16 anos, ou seja, até ao meu regresso a Portugal. Trabalhei sempre para a mesma empresa, nela fui muito bem acolhida, sentia-me no meio de uma família. Em Novembro de 1970, teu pai iniciou trabalho numa empresa de construção, e em 25 de Abril de 1971, contraímos matrimónio na igreja de Niederrad em Alemanha, fizemos um pequeno convívio só para as pessoas mais chegadas, eram cerca de 20 pessoas.
 Após o casamento ficamos a residir com um irmão do teu pai durante alguns meses, depois ele regressa a Portugal e nós ficamos com a casa. As maiores dificuldades que encontrámos nesse país foram a língua, era tão triste querermos falar algo ou entender e, não perceber nada, mas à medida que o tempo passava, as coisas foram melhorando, e o nosso grande objetivo era trabalhar muito para ganhar dinheiro para vir para Portugal, fazer uma casa. Teu pai, rapidamente mudou de trabalho e veio para a mesma empresa onde eu estava. Teve a função de motorista e encarregado (transportava os trabalhadores da empresa), teve sempre carro da firma, que trazia para casa e ocupou um cargo de chefe de equipa, tendo um grupo de trabalho ao seu cuidado.
  No dia 24 de Agosto de 1972, um dos dias mais felizes da minha vida, fui mãe pela primeira vez, nasceste tu, numa clínica perto da nossa casa, o parto foi muito difícil, teve que ser cesariana, a seguir ao parto fiquei vários dias em coma, pois durante a gravidez tive vários problemas de saúde e contrai uma doença crónica que ainda hoje, passados 38 anos me persegue “Bronquite Asmática”. Do parto fiquei internada 3 semanas, foi um momento difícil, teu pai chegou a ser confrontado pelos médicos com a questão” Salvar a criança ou a mãe?” teve que assinar um termo de responsabilidade, e graças a Deus, salvámo-nos as duas, foi um milagre.
 Fizemos o teu batizado, na igreja de Niederrad, onde casamos, tinhas cerca de dois meses de idade, o padre chamava-se Xavier.
 Entretanto era muito difícil arranjar creche, para ficares, e tivemos que tomar a decisão mais difícil das nossas vidas, ou optávamos por abandonar Alemanha e regressar, ou trazíamos a menina a Portugal, ou deixava de trabalhar, o que era impossível nesta fase, não tínhamos rendimentos para isso, estávamos nos princípios da vida. Mas com o objetivo de conseguirmos uma vida melhor, fazer uma casa, dar um melhor futuro aos filhos, trouxe-te a Portugal com 5 meses, posso te mostrar uma fotografia que teu pai tirou nesse dia, que ficou marcado nas nossas vidas. Ficaste com a avó Teresa, que ao contrário de criar 9 filhos, criou 10, pois viveste com ela até aos 12 anos de idade, embora com muitas viagens e pequenas férias em Alemanha, viajaste muito de avião.
 Os anos foram passando, tu entraste para a escola, a mesma que eu frequentei, e ao atingir os 12 anos decidimos que estava na hora de regressar para ao pé da filha, por sua vez o pai sempre ambicionou fazer uma casa perto do hospital e da escola, deixando as origens para trás, escolhemos a cidade de Vila Real para vivermos, onde permanecemos até à presente data. Compramos uma casa antiga, reconstruímo-la, começando do zero e passo a passo fomos construindo assim o nosso projeto de vida, que infelizmente por obra do destino foi interrompido. Teu pai foi surpreendido por uma doença maldita “Câncer” e em menos de dois meses acabou por falecer.
 Em Agosto de 1985, regressamos definitivamente a Portugal, pois estava na hora de apoiarmos a nossa menina que já ia iniciar o 6º Ano, na escola de Cerva.
AGMM: Arrependeu-se de ter voltado para Portugal?
EGGQC: Considero que não me arrependi de tomar esta decisão, embora tenha plena consciência que o país de onde vinha era muito superior, a todos os níveis, começando pelos salários, jamais, com a formação académica que eu tenho, conseguiria ganhar cá o que ganhava lá. Naquele país, senti que fazia parte de uma família, tenho muitas saudades, fizeram-me uma grande festa de despedida, fui muito bem tratada, só tenho a dizer bem, nessa festa estiveram presentes desde os chefes da firma, ao diretor do hospital. Este entregou-nos um quadro com uma imagem do hospital, para trazermos para Portugal e não esquecermos aquele lugar. As tristezas que tive, foram poucas, deveram-se a situações de trabalho com colegas portugueses.
 Cá, as dificuldades são enormes para quem não tem formação académica, embora ainda hoje noto que o nosso país está muito aquém de outros, tem uma grande caminho para percorrer, e poderei afirmar que nunca chegará lá. As maiores diferenças que senti, foi o nível de vida, lá estávamos habituados a um nível de vida que de forma alguma, poderá competir com este que temos cá.
AGMM: Como comunicava com a família?
EGGQC: Quase sempre por telefone, correspondência era muito raro.
AGMM: Como disse, migrou para a cidade. Achou alguma diferença?
EGGQC: Não, foi bom vir para Vila Real, depois de passar este tempo em Alemanha, se fosse para a minha aldeia, aí sim, iria achar uma grande diferença, assim a mudança foi grande mas não tão brusca.
AGMM: Teve mais filhos? Fale-me deles?
EGGQC: Sim. Depois de estar cá, nasceu um menino, o David Gaspar Machado no dia 13 de Setembro de 1986, que tem agora 24 anos de idade. Fez todo o percurso escolar em Vila Real, completou apenas o 12º Ano não querendo estudar mais. Começou a trabalhar numa empresa de elevadores, há já 3 anos, e nos tempos livres dedica-se à jardinagem, atividade que gosta muito de fazer. O David ainda está solteiro e reside comigo.
 A minha menina, que és tu, estás uma senhora com 38 anos, casada com o rapaz da mesma aldeia “Lugar da Calçada”, tu fizeste todo o percurso escolar em Vila Real, licenciaste-te pela Universidade Católica do Porto na área das Ciências Sociais e Humanas, com muito sacrifício pois trabalhavas e estudavas ao mesmo tempo, foste uma grande lutadora. Agora continuas, e estás a frequentar o Mestrado pela UTAD em Ciências da Cultura. Começaste a tua vida profissional aos 18 anos de idade, com a função de Oficial Administrativa principal numa Associação durante 10 anos, em 2001 iniciaste um novo emprego, no Centro Social Paroquial de Mateus onde te encontras ainda hoje exerceu funções de professora nos primeiros seis anos e agora animadora sociocultural até aos dias de hoje.
AGMM: Já tem netinhos? Quer falar-me um pouco deles?
EGGQC: Claro, os meus netinhos, são os teus filhos, são a minha alegria, a Patrícia com 15 anos frequenta o 10º Ano e quer seguir economia, tem sido uma boa menina, o Diogo com 11 anos de idade frequenta o 5º Ano, é também um grande traquina.
AGMM: Qual é a sua prática religiosa?
 EGGQC: Somos católicos, o teu pai enquanto jovem, fez parte do grupo de jovens ao qual chamavam “Juventude Católica” enquanto estava a residir com os pais dele. Ambos procuramos educar os nossos dois filhos neste caminho da fé cristã, ambos fizeram o percurso catequético até ao Crisma. Tu em Limões e o David cá em Vila Real. Tu continuas a ser um bom exemplo disso, dás o teu contributo à comunidade como catequista na paróquia da Nª Sr.ª da Conceição há já 10 anos.
AGMM: Tem fotografias dos seus filhos quando fizeram as festas religiosas?
EGGQC: Quase nada.
AGMM: Pertence à fábrica da igreja? Foi mordoma de alguma festa?
EGGQC: O teu pai foi mordomo se não me falha a memória em 1976, estávamos em Alemanha e como havia lá muitos emigrantes portugueses, na aldeia era hábito nomear um mordomo em cada país ou cidade onde havia emigrantes ou migrantes, com o objetivo de angariar dinheiro para a festa do S. João, era a romaria anual da aldeia, não tenho qualquer fotografia desse tempo.
AGMM: Tem fotografias do pai quando ele participou nessas festas?
EGGQC: Não, desse tempo não tenho nada, não havia muito dinheiro para comprar as máquinas fotográficas.
Memória do Passado
AGMM: O que recorda de Portugal no período em que nasceu?
EGGQC: Muita miséria, uma vida muito dura, no local onde vivia estávamos muito distantes do que se ia passando, como já disse, não havia luz elétrica, não havia televisão, havia rádio mas só a pilhas, às vezes não havia dinheiro nem tempo para as ir comprar. Para adquirirmos alguns géneros para a alimentação deslocávamo-nos a Cerva, cerca de 15 quilómetros, demorava mais ao menos duas horas a pé, outros produtos mais raros íamos a Ribeira de Pena, já era muito longe e íamos de autocarro. Vivíamos do que dava a terra, era uma grande miséria. Só quando emigrei é que conheci uma vida para além de difícil muito melhor, embora com todas as dificuldades da língua, da adaptação, do conhecimento de uma cultura muito diferente da nossa, uma civilização muito diferente tudo era melhor daquilo que tínhamos, ou seja “não tínhamos nada”.
AGMM: Quer falar-nos do Regime de Salazar - (Estado Novo)?
EGGQC: Do regime de Salazar, recordo-me de não podermos falar aquilo que nos apetecesse contra o governo, embora eu não senti isso na pele, pois éramos pacíficos, estava tudo mal, mas nós não reclamávamos nada. Lembro-me ainda de virem pelas portas, homens do governo obrigar os agricultores a dizerem aquilo que colhiam das suas terras, depois mais tarde voltavam para obrigar os agricultores a vender, recordo-me de o teu pai falar que o pai dele, meu sogro, enterrava nas cortes do animais os cereais para não ser obrigado a vendê-los, pois esses faziam falta para o pão que se comia durante o ano, não se comprava pão algum, era cultivado e depois feito em casa.
AGMM: Acha que havia falta de liberdade? E de oportunidades?
EGGQC: Não havia liberdade, não podíamos dizer nada contra o governo, se o fizéssemos a PIDE andava à escuta e levava as pessoas presas. Oportunidades - zero, principalmente nas aldeias mais isoladas, onde nada chegava e tudo era esquecido, vivíamos na escuridão total, só muito mais tarde depois da revolução é que as coisas começaram a “compor”, e com a emigração esta sim, abriu as portas para as pessoas melhorarem as suas condições de vida, e trouxeram para as aldeias muita riqueza, vários melhoramentos, as casas, as condições de vida.
 Os mais pobres não tinham oportunidades sequer, esses eram encostados completamente. As famílias mais abastadas, já tinham mais poder económico, logo tinham mais oportunidades para colocarem os filhos a estudar, outros até tinham possibilidades económicas, mas, a sua mentalidade era “trabalhar a terra”.
AGMM: Alguma vez foi interrogada pela PIDE?
EGGQC: Nunca, talvez porque vivíamos numa aldeia muito isolada, só sai de lá quando emigrei, e de lá não lembro haver ninguém revolucionário, as pessoas eram pacíficas ou tinham medo e não se pronunciavam.
AGMM: Relativamente ao 25 de Abril de 1974 - Regime democrático?
EGGQC: Quando se deu a Revolução do 25 de Abril eu estava em Alemanha mais o teu pai, acompanhávamos as coisas pelas notícias, mas nesse tempo até a televisão era limitada, havia apenas um canal e uma hora ao sábado que transmitia as notícias de Portugal, se por ventura estivéssemos a trabalhar, não podíamos ver. Telefonávamos também para a família e dessa forma íamos sabendo o que se passava no país.
AGMM: Como emigrou para Alemanha, presenciou algo ainda consequente da 2ª Guerra Mundial?
EGGQC: Quando chegamos a Alemanha, ainda vimos muitos prédios destruídos pela guerra, o país estava ainda em reconstrução, os emigrantes ajudaram muito, tive muitas amigas que viveram esses tempos terríveis, e se o assunto vinha à conversa, rapidamente mudavam, não gostavam de falar dessa página da sua história, era demasiado doloroso. O pai falava que algumas alemãs não permitiam que se fizesse mal aos “ratos”, pois em tempo de guerra eles serviam de alimento a muitas pessoas que passavam meses nas caves, e o que passava por lá eram os “ratinhos”, não viam a luz do dia e nem tinham mantimentos. Falava-se muito pouco, notávamos que as pessoas estavam destroçadas e nem admitiam que se tocasse no assunto.
AGMM: Que acontecimentos políticos, sociais vividos no país a marcaram mais?
EGGQC: O que marcou mais foi o regime autoritário, não podíamos expressar-nos contra o governo, na minha aldeia devido ao isolamento, muitas coisas quando chegávamos a saber já tinham acontecido há muito tempo. Era um tempo de miséria, vida muito dura, quando precisássemos de ir ao médico tínhamos que andar duas horas a pé, ou se fosse mais grave íamos a Vila Pouca de Aguiar andávamos duas horas a pé e depois apanhávamos o autocarro que ainda demorava cerca de uma hora. A maior parte das pessoas quando estavam doentes tratavam-se em casa, à base de produtos naturais, utilizavam várias ervas, havia sempre alguém que conhecia e receitava. Esta aldeia estava isolada a 5 quilómetros pela via terrestre, se acontecesse algo que a pessoa não andasse, era transportado num “carro de bois” ou numa “padiola”. Nesse tempo o Sr. Pe. ia celebrar missa à cavalo, a professora primária ia a pé e depois ficava lá durante todo o período trimestral, enfim minha filha, nem é bom pensar, hoje queixamo-nos mas vivemos muito bem.
AGMM: O poder era exercido pela Igreja? Os padres mandavam nas aldeias?
EGGQC: A igreja tinha muito poder o Sr. Pe. era a pessoa mais importante na aldeia, a seguir era a Prof. Primária e só em terceiro lugar o presidente da Junta de Freguesia.
 Lembro-me que na minha aldeia estiveram dois padres o primeiro o Sr. Pe. Manuel Moutinho e depois o Sr. Pe. Agostinho, o meu percurso de catequese foi orientado pelo Sr. Pe. Manuel. Desse tempo não tenho nenhuma fotografia, mas lembro ter feito a primeira comunhão, a profissão de fé e o crisma na igreja de Limões.
AGMM: Que atividades educativas e culturais dirigia o senhor Padre?
EGGQC: O Sr. Pe. dirigia um grupo que tinha o nome de “Juventude Católica” lembro-me ainda das cruzadas, eu nunca participei em nenhum desses grupos, porque essas atividades eram feitas na paróquia e eu para me deslocar teria que fazer uma hora de caminho a pé para cada lado, mas o teu pai fazia parte do grupo “ Juventude Católica”.
 Na minha freguesia existia também uma Banda de Música, que era solicitada para ir tocar para muitos lugares, ou seja na terra de teu pai, lá estava tudo concentrado, era a Freguesia, às aldeias não chegava nada.
AGMM: Lembra-se das atividades desenvolvidas pela Casa do Povo da sua aldeia?
EGGQC: Na minha aldeia não havia Casa do Povo, mas existia uma Cerva, distava da nossa aldeia 2 horas a pé, promovia atividades, mas eu nunca ia, era impossível a deslocação, e os caminhos eram muito rudes, e depois eu era a mais velha tinha muito trabalho, cuidar dos meus irmãos e ajudar a minha mãe, não havia muito tempo para essas atividades.
AGMM: Os professores eram também pessoas com uma forte influência na comunidade. Como recorda os seus professores primários?
EGGQC: Tenho boas recordações da minha professora, era uma senhora lá da aldeia, ensinava bem, era dedicada, às vezes ficava mais tempo com aqueles que não aprendiam, não se respeitava muito o horário, mas também batia muito a quem aprendesse mal, os nossos pais se nos queixássemos ainda nos batiam mais, enfim era o “oito hoje é o oitenta” os professores não têm autoridade nenhuma.
AGMM: O chefe da família era o dirigente da casa?
EGGQC: O chefe de família era o pai, era a pessoa que tinha que sustentar a casa, tendo a ajudá-lo a esposa. Esta cuidava da casa, dos filhos e apoiava o marido na lavoura, a mulher não tinha os mesmos direitos, quem mandava era o marido, por sua vez a mulher tinha que ser submissa, obedecia sem reclamar não tinha sequer o direito de levantar a voz. Era considerada “um objeto” e grande parte delas levavam porrada dos maridos e ainda os encobriam. Felizmente na minha casa, relativamente a esse assunto não tínhamos esse problema, o meu pai nunca bateu à minha mãe.
AGMM: O marido era fiel à esposa ou não?
EGGQC: Nem sempre, havia de tudo, uns eram fiéis, outros não, mas a esposa aceitava a infidelidade e nem sequer ousava pronunciar uma palavra. Ela fazia isso pelos filhos e pela sobrevivência, como não era independente tinha que se sujeitar, nem sequer era concebida a ideia de divórcio, isso era impensável.
AGMM: Os casais usavam métodos anticoncepcionais ou não? Porquê?
EGGQC: Acho que não usavam, pois na aldeia a maior parte dos casais tinha 8, 9 ou 10 filhos, e conheci duas senhoras que tiveram 13 e 15 filhos. É claro que não usavam nada, depois estava eminente o “pecado” tinham que aceitar os filhos que Deus lhes quisesse dar, a minha mãe também teve nove.
AGMM: Concorda com essa imposição ou não?
EGGQC: Não concordo, mas naquele tempo pensava-se assim, e tudo era normal ninguém estranhava. Eu acho que devemos pensar que é necessário educá-los, ajudá-los a crescer, ter o mínimo de condições, já não falo em luxos. Pois grande parte da miséria também vinha daí, os casais não tinham possibilidades de sustentar dois e tinham dez, tinha que haver “fome” ou falta de muitos bens.
AGMM: Havia muitos abortos naturais e muita mortalidade infantil. Sabe por quê?
EGGQC: Sim, havia muitos abortos naturais, porque a mulher fazia trabalhos forçados durante a gravidez, alimentava-se muito mal, nunca ia ao médico, falta de assistência.  Na altura do parto, os filhos nasciam em casa, sem condições nenhumas, muitas vezes quando corria mal chegavam a morrer, devido à grande distância e às condições de acessibilidade para o hospital mais próximo.
AGMM: Pertenceu a algum partido ou movimento?
EGGQC: Não pertenci, e na minha família as pessoas eram pacíficas.
AGMM: Sabe com certeza, que vivemos uma Guerra Colonial durante 13 anos, que levou muitos jovens à morte. Conheceu alguém que viveu esse tempo? Quer nos Contar?
EGGQC: O teu pai como sabes esteve na Guerra Colonial no Ultramar em Angola desde 1962 a 1964, esteve em Quilo Pombo sempre no mato. Tenho muitas fotografias, documentos e correspondência que comprovam esse tempo. O pai dizia muitas vezes que nunca conheceu lá uma cama, viviam em barracas construídas por eles. Ele dizia também que havia muita falta de água, e quando chovia punham toldos de plástico e aproveitavam a água das chuvas para cozinhar, beber, fazer a sua higiene, enfim, foram tempos muito duros, lembro ainda que ele falava aquando da viagem para Angola ainda ouviam os gritos das famílias passados três dias. Quando regressou, não gostava de falar desse período da sua vida, dizia que a maior alegria que teve, foi quando entregou a farda.
AGMM: Acha que a guerra era necessária?
EGGQC: Não, a guerra foi um erro, tirou a vida a muitos jovens inocentes. O pai ficou com traumas da guerra e não teve qualquer apoio psicológico do estado, o Salazar obrigou-os a ir sem opção. Só passado muito tempo, é que já aceitava falar de algumas passagens. Era tudo muito mau, falava de alguns amigos que perdeu em combate.
 O pai tem muitas fotografias desse tempo, datadas com várias passagens, tem também um caderno, no qual guarda vários escritos, cartas de amor e a carta à madrinha de guerra, passagens, exercícios de memória, palestras que ouvia na rádio, a contabilidade de todos os meses que lá estivera, ou seja quanto ganhou durante o tempo que esteve na guerra, não chegou a 20 contos, e ainda lhe descontaram uma faca de mato que não entregou, uns dias que esteve doente, enfim… Nem há palavras para descrever aquele tempo.
AGMM: Quando voltou da guerra?
EGGQC: O pai voltou em março de 1964, tens uma fotografia do barco “Vera Cruz”, que tem a data do embarque e até o valor da viagem, “sete contos e quinhentos”.
 No dia em que o teu pai chegou a casa dos pais dele, eu estava lá porque estava a ajudar a tia Laura que casou com um irmão do teu pai, o tio Agostinho, e “recordo-me como se fosse hoje, o teu pai vinha muito moreno, trazia umas calças cinzentas, e lembro-me de abraçar toda a gente que estava por ali, eu ainda não tinha ligação nenhuma com o teu pai, conhecia-o de vista e por ele ser irmão do tio, que mais tarde veio a ser meu cunhado”.
 O sentimento era de muita alegria e tristeza ao mesmo tempo. Estava triste pelos amigos que nunca conseguiram regressar, e ao mesmo tempo estava muito feliz, porque chegara vivo e salvo daquele inferno. Ansioso para abraçar a família de quem tinha muitas saudades. Tinha uma irmã mais nova, a tia Benta, com quem se correspondia todos os dias, tendo centenas de aerogramas, quando chegou, juntaram-se os dois e queimaram tudo, ele dizia que aquelas letras traziam muitas “lágrimas de sangue” e muito sofrimento, queriam esquecer aquele período da sua vida.
AGMM: O que gostaria de dizer sobre esse enorme drama que atingiu Portugal nas décadas de 60 e 70?
EGGQC: Esse drama trouxe muito sofrimento para toda a gente, era muito difícil para as famílias e amigos que ficavam e viam partir os filhos, maridos, amigos para a guerra, na incerteza de os voltar ou não voltá-los a ver.
 Na minha aldeia, foi um rapaz para a Guiné e morreu em combate, o funeral foi acompanhado pelo exército, levava a bandeira a cobrir a urna, e na hora de descer para a cova todos os militares descarregaram as suas armas para o ar, em homenagem àquele amigo que morreu a defender a pátria.
 Outros ficaram com traumas para toda a vida, e muitos ficaram mutilados, sem pernas, nem braços em cadeiras de rodas, foram milhares de jovens que perderam a vida. O teu pai, como pudeste ver com os teus olhos, naquela folha que encontramos no caderno das lembranças, vês lá um série de quadras que transmitem o que ele sentia em 1961, e ele escreveu esse papel em Dezembro de 2005 passados mais de quarenta anos.
AGMM: Como sabe, houve pessoas que migraram, ou seja deslocaram dentro do país para as cidades em busca de novas oportunidades. Quer contar-nos a sua experiência?
EGGQ: Eu e o teu pai tínhamos um objetivo, depois de ganhar algum dinheiro, construir uma casa que ficasse perto da escola e do hospital. Então escolhemos Vila Real, para recomeçar a vida depois de regressarmos de Alemanha. Tentamos instalarmo-nos, tínhamos um quintal que íamos cultivando e criávamos também bovinos. Cá nasceu o meu filho mais novo, o David em 13 de Setembro de 1986, que fez todo o percurso escolar cá em Vila Real, e assim fomos “tenteando a vida”.
AGMM: Viveu alguma catástrofe natural?
EGGQC: Lembro-me quando ainda era jovem, um grande tremor de terra em Lisboa, que fez-se sentir na minha aldeia, ouvia-se “terlintar os copos na cristaleira”, e as areias do telhado a cair.
AGMM: Sofreu alguma experiência traumática?
EGGQC: A pior experiência traumática que vivi, foi quando assisti à última fase da doença de uma irmã e do teu pai “maldito cancro”, durante muito tempo, tive as imagens da minha irmã gravadas na memória, e presentemente ainda sofro com as do teu pai. Foram dias de autêntico sofrimento e a incapacidade de não poder fazer algo para os salvar…!
AGMM: Mãe! Como já disse a morte dessas duas pessoas, marcaram-na muito, mas perdeu mais alguém que também deixou marcas profundas?
EGGQC: Sim, sem dúvida a morte de meu pai, tinha apenas doze anos de idade, ele estava em Lisboa, deixou a aldeia e foi para lá para melhorar a nossa vida. Tinha nove filhos para “criar”. Não era fácil, acabou por falecer com uma pneumonia tinha apenas 42 anos de idade. Era muito novo, eu era pequenina e tinha abaixo de mim, mais 8 irmãos, “foi terrível”.
 A notícia chegou por telegrama, ele estava lá sozinho, nós não tivemos condições económicas para o trazer para cá, ficou lá, a minha mãe foi lá mais o tio Agostinho, irmão de teu pai, era muito nosso amigo, e nessa hora foi um “braço forte” para nós, ajudou a avó tiveram que reconhecer o corpo, não há palavras para descrever esse momento tão trágico nas nossas vidas.
 A maior mágoa que tenho e ainda hoje sinto é relativamente à família do meu pai, eles podiam ter ajudado a trazê-lo para a aldeia, “foram uns fracos”. O meu pai tinha três irmãs e o meu avô, e a nível económico tinham possibilidades, mas não fizeram nada. O tio Agostinho foi um verdadeiro “pai para nós”, foi ele quem ficou responsável por nós, nosso “tutor” e defendeu-nos sempre, somos muito gratos a ele, a minha mãe ficou sozinha com nove filhos, todos menores, “nem é bom pensar como foi a vida a partir daí…”.
 A morte de dois irmãos, que faleceram com “tumores cancerígenos”, eram muito novos, um tinha 45 anos o outro 51 anos de idade. Ambos deixaram filhos menores.
 “A marca mais trágica foi a do teu pai”, que faleceu, como já disse, com um “cancro fulminante”, no espaço de um mês e meio, levou-o à sepultura, acompanhei-o
até ao último minuto, mas é doloroso demais, não conseguirmos fazer nada para salvar a pessoa que amamos, como sabes durante seis dias não o larguei estando com ele dia e noite no hospital. Ele tinha apenas 69 anos, agora estávamos nós a repousar da vida dura e cheia de sofrimento que tivemos. Temos dois netos aquém dávamos toda a tenção, tem sido muito doloroso ultrapassar esta fase, acho que nem vou conseguir….
Comparação com o presente
AGMM: O que lhe parece que mudou?
EGGQC: Tudo mudou, “foi como da noite para o dia”. Com a mudança da ditadura para a democracia, passamos a poder falar aquilo que nos apetecesse e no lugar que quisermos, podemos expressar o nosso direito de voto. Somos livres, direito à igualdade, a mulher conseguir tornar-se independente, ter os mesmos direitos que os homens, não ser tão submissa, poder ser independente, ter um emprego, ter direito a falar.
 Depois do 25 de Abril, melhores salários, melhores empregos. Esta mudança foi muito importante, pois os idosos já têm direito à reforma que tanta falta lhes faz, os abonos da família, para ajudar na educação dos filhos, as bolsas de estudo, os subsídios.  Sem dúvida, os idosos hoje têm melhores condições de vida que tiveram os meus avós, tem direito à saúde, acesso aos medicamentos, tendo assim melhor qualidade de vida. As pessoas ainda se queixam que estamos em crise. A maior crise que sinto nos tempos de agora, é a crise de valores, perderam-se grandes valores morais, o respeito pelos outros, muita gente não olha a meios para atingir os fins, os próprios sentimentos, acho que as pessoas são mais “duras e frias”, pouco tolerantes, indiferentes, o sentimento de entreajuda que havia dantes, hoje perdeu-se totalmente. As pessoas não pensam em poupar, o desemprego é fruto de muitos que não se querem sujeitar a trabalhar, isso é o que penso.

ENTREVISTA
Entrevistadora: Assis Gaspar Machado Monteiro (Filha)
Entrevistada: Emília Gaspar Gonçalves Queirós da Costa (Mãe)
Local da Entrevista: Lugar da Calçada – Adoufe – Vila Real (Domicílio da entrevistadora).
Data da Entrevista: No dia 15 de Maio de 2011.
Duração da Entrevista: Realizou-se desde às 15h até às 23h, com um intervalo de 1h para um lanche ajantarado. Foi um momento bem passado, pois ouvir esta história dos meus pais marcada por momentos bons e maus, tempos difíceis, enfim, passamos à narrativa da entrevista.
Entrevista corrigida por Olinda Santana
18/2/2012